quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

O feio e o belo se confrontam em ‘Animais Noturnos’

Os personagens do novo longa de Tom Ford perdem o senso da beleza real ao tentar se proteger da feiura da vida — e cometem erros irreparáveis

A galerista Susan (Amy Adams): um mundo sem vida, em que o feio só entra mediante o filtro do “artístico” (Merrick Morton/VEJA)

É improvável que se passe indiferente pela abertura de Animais Noturnos, que tem estreia prevista no Brasil para 29 de dezembro. Fotografadas em uma câmera lenta luxuriante, mulheres nuas, imensamente obesas, com botas de vinil e quepes com as cores da bandeira americana bordadas de lantejoulas, fazem números de dança go-go, exibindo-se, acariciando-se e olhando nos olhos do espectador — que, estupefato, aos poucos sente beleza e humanidade emergindo em meio ao choque. Talvez esse seja um dos papéis da arte: insistir no feio, desnudá-lo, até que ele revele o que contém de belo. Ou, pelo menos, esse é um dos flancos pelos quais se pode abordar o segundo longa-metragem de Tom Ford, designer e magnata da moda. Como empresário e também como diretor de Direito de Amar (2009) e Animais Noturnos, Ford cultiva o belo, o simétrico, o limpo, o perfeito e o rarefeito. Mas deixa transparecer uma ambiguidade considerável a respeito dessa obsessão. A casa de sua protagonista, a galerista Susan Morrow (Amy Adams, em um desempenho que rivaliza com o de A Chegada), é um triunfo do modernismo e do minimalismo, uma construção de esterilidade calculada da qual se avistam, lá embaixo, distantes como os mortais estão do Olimpo, as luzes caóticas de Los Angeles. A própria Susan é um objeto de arte — os cabelos ruivos sedosos, a pele marmórea, os olhos de um azul puro e translúcido, a restrição indevassável. Mas essa insulação é uma espécie de agorafobia, sugere o filme. Habita-se esse mundo em pânico das imperfeições e feiuras do mundo real, em uma paralisia que busca futilmente anular as erupções a que a vida está sujeita.

Para Susan, que está casada com um homem belo como ela (Armie Hammer), mas que mal se dá ao trabalho de esconder suas traições, a erupção surge na forma da prova de um romance ainda não publicado. O autor é seu ex-marido, Edward (Jake Gyllen­haal), de quem ela se separou dezenove anos antes e com quem nunca mais teve contato. O livro vem dedicado a ela; e, no bilhete que o acompanha, Edward diz que decidiu seguir os conselhos de Susan e escrever com uma coragem mais visceral. Assim que Susan abre a brochura, então, o que se passa a ver é uma encenação do romance. Mas não uma encenação objetiva, e sim a que se vai formando na imaginação da leitora.

O personagem principal do livro, Tony Hastings (também Jake Gyllen­haal), está saindo em viagem pelo Texas com a mulher e a filha (Isla Fisher e Ellie Bamber) — ambas ruivas, como Susan e sua filha. Está claro que Susan reconheceu, no bilhete do ex-­marido, a indicação de que o romance tem cunho autobiográfico, e não é de estranhar seu nervosismo à medida que o enredo progride para uma situação de tensão terrível: enquanto roda pelas estradas escuras e desertas, a família é abordada por três rapazes rudes, violentos e ameaçadores, que jogam o velho Mercedes de Tony para o acostamento. Ray (Aaron Taylor-John­son), o líder da matilha, faz coisas indizíveis com os Hastings — tão medonhas que Susan fecha as páginas abruptamente, com o coração disparado, e vai se refugiar nas suas lembranças do ex-marido. O que, por sua vez, abre uma nova linha narrativa no filme: a recriação do passado e da maneira como Edward e Susan se conheceram, se apaixonaram e então foram incapazes de continuar juntos.

Tom Ford adapta o romance Tony e Susan, publicado em 1993 pelo americano Austin Wright, com razoável fidelidade, mas muitas elipses. Onde Wright tornava explícitas as ligações entre as três histórias, Ford as prefere alusivas, mais centradas nas associações visuais que em pistas narrativas. E, à medida que ele alterna as três tramas e as contrapõe, mais intenso se torna o pressentimento de que a fantasia de vingança contida no romance de Edward é um ajuste de contas tardio consigo mesmo e com Susan. Mais evidente, também, vai se tornando o vínculo indissociável do belo com aquilo que parece feio, triste, falido. Tom Ford mostra que Susan e Edward, ao separarem os elementos de sua vida entre essas duas categorias, confundiram-nas de forma às vezes irreparável. Pior: ao evitarem uma coisa, privaram-se de todas as outras.

Tome-se, por exemplo, o policial texano Bobby Andes (o espetacular Michael Shannon), que vai à procura de Tony Hastings para investigar os crimes cometidos contra ele, sua mulher e sua filha. Magro, cavado, taciturno e de modos evasivos, vagamente intimidadores, Bobby é uma figura cinzenta. Mas, enquanto caminha das bordas do filme para seu centro, ele se metamorfoseia em algo puro, luminoso — não obstante seu código moral muito oblíquo — e extraordinariamente comovente. De certa forma, Bobby representa tudo aquilo de que Susan procurou se resguardar no seu mundo perfeito. Mas resume também tudo o que ela buscou nesse resguardo, sem nunca encontrar.

Por Isabela Boscov
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